Acordo algures na noite onde a escassa luz já me turva o julgamento do tempo. São 5h da manhã, está a voltar. O meu corpo lentamente acorda e com ele acordam as dores. As dores também dormem e também acordam devagar. O pescoço que volta a enrolar-se em si mesmo prendendo a descontracção, o joelho que fragmenta e dá à perna a oportunidade de pousar duas vezes em cada uma que se pousa no chão. Cada uma delas tem uma história, cada uma delas tem até um nome e um alívio. Há destes negócios cá no mundo dos corpos onde se leiloa o conflito pela dor. É automaticamente eficaz. Deixamo-nos de merdas. ''Deixa-te de merdas que agora tens é que te concentrar com qual pé desces primeiro'' falas-te a ti quando te saltam quintos pensamentos reflexivos de culpabilização. A dor torna-nos mais pragmáticos. Poderia haver uma dor em tudo que o mundo seria mais fácil, era só empurrar para ali o peso de consciência, a culpa, as repetições de pensamento e o assunto estava arrumado; o resto do corpo preocupa-se em viver. Quem não quer uma dor se isso alivia o viver.
Gosto do cuidado que tenho sobre mim quando estou doente.
Sinto-me quente, sinto-me gente.
A pouca exigência que um corpo pede para se manter fala baixo aos meus ouvidos, não me estimula a por ele correr.
A doença aparece-me quando preciso por mim ter respeito, em vez de lidar com o mundo, guardo o nó num canto, por defeito
Quando penso não me quero desfazer dele, ele deixa-me focar, ele deixa-me procurar como o desfazer, mantém-me ativa, mantém-me pragmática para com o mundo não lidar
Quando se tem uma dor, somos obrigados a para nós olhar
Olho para mim e para quem cá pertence
Olho para mim e olho para quem me compreende
Olho para mim e procuro quem me faça sentir igual
Guardo em mim uma doença onde a vocês vos dei um final.
A minha língua não dobra sozinha. Preciso da tua língua para dobrar a minha. Só compram coisas caras, tratam-se bem. O dinheiro nunca deu as condições, o pobre só não tem estima porque a ditadura dentro da cabeça não o permite. Reuni-me hoje com a morte, não com a morte, com o coma, tinhamos acordado não voltar ao mesmo, hoje sou uma pessoa nova mas ainda baixo a cabeça. Soo certa a falar, não sei já falar sem ser direito com medo de soar mal ou não fazer sentido. Dá-me um tiro. Tenho raiva de ti. Não fui feita para dormir contigo ao lado. Baixaste a cabeça mas não és tu que baixas, és tu em mim, sou eu, sou eu que baixo a cabeça por ti. Só me sei de costas a abandonar os outros, não me sei de frente sem sorrir, sem sentir com a garantia de uma diversao eterna. Berra, comigo, contra mim, preciso que me odeies para poder voltar a gostar de ti. Nunca deixei, porém, lá vem o medo de falar rematar as palavras que são ditas. Devia poder dizer à vontade que te quero deixar embora não queira, que não te vejo a amar as palavras que te deixo, não és tu, lá está o conforto, confronto-me apenas no limite da tua carne. Sabes tu em que vida te meteste, que vida é esta que passa o tempo em negocio entre o vacilo e o cedeste. Pára de rimar. Só te deixas quando tens ritmo, não quero esta corda que me leva para lá do que sinto. Minto, não a ti mas porque para mim amar podia ser mentira, que dentro dos meus olhos, dos meus peitos, dos meus nojos de defeitos, quero-te gritar, quero-te afastar, quero voltar para a solidão onde a saída é a rouquidão que teimo em deixar entrar. Chora por mim, apatico, nas minhas lágrimas, és o amor da minha vida mas a minha vida não sabe quem é, esteve às portas da morte para além do que ela quer. Não me salves, não me deixes mas deixa-me falar, deixa-me deixar-te, deixa-me afastar-te sem longe de mim tu teres que ficar. Parem-me o pensamento, ele foge para onde não quero, arranco dores constantes a cada temo que me dás por comigo ficares.
A espera faz-me sentir que cada alarme pode ser o momento. A espera faz-me querer dormir para não ansiar e para poder continuar a viver sem estar à espera. A espera espreme-me apenas para procurar sinal dele e para se fingir em horas de contemplação. A espera divaga-me. Faz-me senti-lo aqui, junto a mim, como um dia disso me falou. A espera faz-me imaginar e reimaginar a porta de casa a abrir, ou o som do carro a chegar, o carinho no escuro com eles à volta, sem eles à volta. Faz-me sentir correntes porque para lado nenhum me posso mexer e o tempo passa. E o acaso por vezes acontece e o tempo mais passa. Não quero sair daquele sofá, daquela sala onde estou a viver, falando, de ti. Estou mais próxima assim. Mais próxima sem ter que esperar se te aproximas ou se te afastas. Se me vês de longe ou me queres perto. Ali estou eu e está o resto da minha vida, cá fora parece que estão só cadeiras para me sentar e ver-te às rodas desfocado ou em HD.
I know you're dead in your mad cage. Your death it's not peacefull,
I don't get to see you shine in the bright sky's stars.
Mom I pray for you everyday, I hold myself together everyday and I resigne to be no more than a child cause reality is painfull to see. Mom, you're in a detriorating body with an ill mind and the worst is: you choose to be that way. I feel alone, mom, sarcastic thing, you see. Once you told me that the moment you knew you were pregnant of me you wouldnt be alone anymore. You got pregnant of that solitude. I carry the emotional sickness of missing your wishes, your wills, your presence. I want to love, mom. I wanted to ask you how to do it and wanted you to hold me and made me feel secure and fearless. But mom, you're dead. I dont even have a grave to cry. How I wish you could meet him, mom. I'm sure you wouldnt even ask your typical questions on whether is he respectfull or loving, you would just look at him, look at me and smile. Mom, when you gave birth to me I became a mother. I remember those hard nights when I went to bed fulfilled cause I acomplished the mission of proving to you that the world was a safe place, a hopefull one. I can still feel all the air invading my chest when you and dad were lost and I had to grab your hand, take you home and put toals on your forehead. One thing is for sure, I certainly gained the abillity to make someone talk, to make them confortable, and I must admit, talking is one of my kinds of making love. I feel secure when I talk, I remember how it made you feel present and reborn, you would clean your thoughts and rebalance yourself. He is great, mom. He makes me sad. Not himself, actually, is you. It's a gap between you and him. He loves me more than you do, mom. He looks beneath my surface and takes me to the right places so I cannot lie to myself. He's gentle with my feelings and he lives his life. He doesnt drink from my time, he nourishes it. He gives me chills. My heart was upside down, he mirrored it and made me see it was fine. That I was fine, that I had a place. Mom, you and him make me sad cause I dont want him to leave. I don't cry for him as I cry for you. For you I cry because I can talk and even if I asked you you would never listen cause you can't. I don't want to burry him, i don't want to look at the sky and look for the bright of his star. I want to live a life, our life, my life. Mom you made me capable of talking but you lacked me on having the courage to iniciate a talk. Mom you made me dream of someone to listen but you didn't teach me to be persistent at communicating myself so people could listen to me. Other time I would think that I was hoping for the wrong person, I would have to grave his body in some methaphorical place and I would keep walking through life searching for a new ear. Mom, now I know it's him, he could be sleeping that I know I have the right to mock him and wake him up and tell him to listen to me, fight my monsters and let the words come out of me. Mom, I know you're not here. I know you're dead in your mad cage. Your death is now peacefull. The night is dark. I can now see the bright at the sky's stars.
Eu desconfio da saudade. Eu não tenho saudades de sentir calor, só não sei lidar com o frio. O mundo onde estamos inseridos tem um buraco cavado para assentarmos as nossas raízes culturais e sentirmo-nos em pertença. Estamos perante múltiplos túneis culturais que nos libertam e veiculam a libertação dos sentimentos, nos dão uma aura de conhecimento seguro por estar tão bem definido o que é sentir e como é sentir. Estranho fenómeno a intensidade da tristeza, a segurança da tristeza, tantos poetas escreveram sobre ela, tantas caras e braços caidos nos comboios e nos metros nos informam sobre ela, a tristeza tem o caminho mais claro e aberto de todas as emoções. A cultura abriu-a para nós tornando-a tão melancólica, tão bem convidada. Entre nós e dar vida à tristeza é uma autoestrada bem polida e alcatroada. É um pau de dois bicos, portanto. É de um peso e fardo gigante o homem ou mulher que parte sozinho, fora da história dos sentimentos postos à vista pela cultura, à procura de uma garganta para poder libertar a voz do que sente. Os divórcios. Não havia guidelines para sentir o divórcio. O divórcio, no início, terá sido sentido como a antagonia do que é sentir o casamento. O casamento já não existe, já não provoca nada no momento do divórcio. A saudade do casamento, a melancolia do divórcio traduz-se a uma perda, a uma confusão de emoções não expressas nem encaminhadas pelo que era o casamento. Felizmente que há estes alicerces que não temos que pensar muito: os natais, as prendas de anos, os casamentos, as amizades. Não temos o trabalho todo em pensar como sentir e o que sentir apenas sofremos da transição de um mapa social para o outro. A transição é a procura pelas linhas do que sentir na próxima etapa. A saudade não existe. A dor do divórcio não existe. O casamento e o divórcio são antagónios. Existe assim a dor do vazio que não pode ser explicado pela antagonia do casamento.
As redes sociais facilitam e reconfortam a falta de capacidade que temos para interpretar os outros. A rede social, ao conceptualizar estatísticas de gostos, o gosto por si só, ao propôr um mural onde podemos organizar aquilo que expomos sobre nós próprios, organiza um raciocínio e um canal de interações que deveriam ser conquistadas na vida real. Um gosto, no início de tudo, é logo associado a um conforto de não solidão, de alegria por reconhecimento da beleza, da felicidade ou mesmo das frustrações que expomos e publicamos. Uma enorme quantidade de gostos será sentida como uma não solidão, talvez até como uma surpresa por nos permitirmos ter acesso a apreciações por parte de pessoas que não nos esperam. Por outro lado, na vida real, essas mesmas pessoas, dentro das suas mentes silenciosas e maneiras de estar enigmáticas, também nos irão encarar como bonitos, interessantes e sorridentes. Porém, o confronto na vida real requer que interpretemos esse elogio por parte externa. O facebook e o instagram fazem essa conversão de interpretação por nós. Online, não temos que decifrar um olhar mais prolongado, não temos que, como elogiadores, ganhar a coragem de verbalizar o nosso agrado, quebrar o clichê da melancolia e dizer uma frase bonita e motivadora. Este fenómeno gera também uma ilusão que poderá ser perigosa, a ilusão de que esta recompensa social, este feedback que nos preenche a necessidade visceral de validação de identidade é obcessivamente merecido através de uma meticulosa seleção de fragmentos de nós próprios. É preciso mediar o prazer entre o exercício de nos expormos pela própria exposição, pelo gosto de pensar sobre nós, sobre a nossa beleza, o nosso defeito, os nossos feitos e afirmá-los e o exercício da recompensa social, da apreciação externa, do fascínio, do calor, do confronto. É necessário ter também em conta que, por muito facilitada que esteja esta troca de injeções humanas, a procura da validação individual, da segurança e auto-estima passa também pelo encontro da forma como gostamos da validação dos outros. Basta olharmos à nossa volta, nem todos gostamos de elogios verbais, nem todos queremos constantemente críticas sejam elas positivas ou negativas, por vezes é enriquecedor possuir um cenário real e encontrar apenas um olhar sem palavras que nos faz sentir queridos, um toque que nos faz sentir integrados e em pertença. Há que tomar consciência que os silêncios, os excessos de palavras em redes sociais têm um grande peso de intenção por parte do outro em querer contactar connosco mas tem também o peso do seu próprio aborrecimento, do seu próprio receio de se manter com espaço nas relações sem sentir que elas desaparecem. É importante não nos tornarmos preguiçosos em entender o que os outros comunicam seja verbalmente a sussurar, a gritar ou por frases mal ditas ou então por gostos, por conversas não começadas quando se está em linha ou por exibições excessivas nas suas páginas pessoais. É preciso acalmar e distanciarmo-nos deste facilitismo e ter sentido crítico, integrar o significado também destas redes sociais para o outro, entender como comunica através delas sem que isso seja uma atividade obcessiva na procura de confiança e segurança mas sim um processo de relação onde se estima a exploração do outro para além de nós, de nós mesmos e do outro connosco mesmos.
Tenho três flores no meu quintal. Estão as três alinhadas viradas para a janela da minha cozinha. Às vezes o vento sopra e elas ficam despenteadas, sem se aperceberem da presença uma das outras. Não sei quanto tempo uma delas vai durar. É a mais nova, a do meio, nasceu das outras duas que em tanto diferem. A minha mão treme quando lhe deito água do canteiro e as pingas saltam desajeitadas tentando atingir a raiz, machucando umas quantas pétalas. Correm na minha imagem milhares de tamanhos diferentes para esta flor. Agora está perto do meu nariz, bonita, linda, com um caule forte e umas pétalas de cores que nunca sozinha conseguiria imaginar. Agora está pequena, ao longe, branca, sem cor, repetindo-se na minha memória como que nascida num monte que nunca vou alcançar por muito que os pés percorram as terras. Olho para as duas das pontas. Olho também para o jardim da mulher dos caracóis vermelhos. Ela só tem duas flores, uma delas está congelada e podre por dentro e a outra tem excesso de água e excesso de luz. Todas as manhãs acordo com o som afogado da pobre planta a deglutir e dos arfares de tanto secar. A mulher irrita-se e atira terra, passeia pelo jardim e dessarruma as árvores em redor. Afasto ligeiramente o olhar de volta para o meu jardim. Tem relva, muita relva ordenada e viva que dança com o vento. Tem, perto de mim, essas três flores. Gostaria de lhes poder atravessar a minha mão para poder sentir que são reais, queria poder reduzir a voz de Deus que tanto nos engana quando nos permite sonhar. Ouvem-se rumores no bairro que por vezes vemos as flores mas são como as miragens do deserto. Deitamos água e só quando vamos embora e voltamos muitas vezes e elas continuarem a aparecer é que podemos dizer que não são uma miragem. Gosto de olhar para o meu jardim assim. A minha flor perto da tua, gosto do baloiçar que elas fazem juntas, das cores que se misturam no ar no final de tarde como uma aurora bureal. Quando me aproximo, não consigo ver tão bem, não sei que tamanho tem a flor do meio para ti. Não sei se vês todas as pétalas que a outra flor da ponta tem, se as aprecias, se as procuras, se elas te fazem sentir fresco e em paz por todas as manhãs que chegam. Gosto da vida contigo porque me fazes esquecer que o tempo existe, dás-me esperança por tudo o que os teus olhos vêem e por tudo o que a tua mente louca se lembra, mostras-te uma porta da vida que não vejo sozinha mas que sei que é também o meu lugar. Mas tenho tanto medo, Pedro, tanto tanto medo que até me faço rir a mim própria com os olhos meio enxutos. Dizem ainda que são só as mulheres que choram sem receios e com força de chorar. Tenho medo de que esta voz que em mim fala para ti não esteja a falar. Que todas as cadeiras do mundo ficassem agora sem assento e no chão me fosse sentar. Gosto de te ouvir no silêncio, quando cantas, só para mim, quando te ponho a cantar e nada tenho que me explicar, posso permanecer em silêncio, no meu pensamento, junto de ti, sem ter que existir para ti. Tenho três plantas no meu quintal e sei que uma e meia a mim me pertencem. Sei que uma e meia a ti te pertencem. Ouve-se pelo bairro que por vezes, quando a nossa flor nasce as pessoas enlouquecem e falam sozinhas palavras não pronunciadas por mais ninguém. Os vizinhos reunem-se, todos juntos num amontoado nas traseiras da frente da moradia a tentar escusar o devaneio e a ver o regador a esvoaçar diabolicamente de uma ponta para a outra. Ninguém consegue decifrar onde começa uma palavra e acaba a outra, ninguém sabe para quem estou eu a falar. Ouve-se também no bairro que quando o sol cai chora a melancolia, que a louca, vizinha da mulher dos caracóis vermelhos, começa a desembuxar as suas preocupações e angústias como se fossem comprometedoras do tempo passar e fala, fala, fala até ser de manhã. Por vezes cansa-se e deita-se a olhar para as estrelas e brinca com as flores. Os vizinhos vão-lhe atirando o jornal para ela ler e a flor dela crescer, as crianças piscam-lhe os olhos e correm em redor da cerca para chamarem a sua atenção, os cães rosnem ao fundo dos quarteirões para anunciar o aconchego. Deus, faz-me uma festa na cara e acolhe-me no meu sono. Deixa-me fechar os olhos e acordar da mesma maneira que de olhos abertos sonho.
Passeio coberta por uma gabardina de pele negra, ténue, guardando a minha nudez. Tenho as mãos agarradas ao colarinho, apertado contra o vento e a cabeça baixa, vendo os pés da multidão a calcarem rápidos entre mim. À minha beira anda ela, não me agarrando mas como uma presença constante que não me dá privacidade mas me abandona na solidão. Vou contra a corrente pela avenida larga, milhares de pessoas passam, homens, mulheres. Sinto frio. Não pela frescura do ar mas por estar mais nua que eles todos. Contra a corrente poderiam alguns deles largar os sapatos vermelhos pela tensão das horas andadas e ainda haver meias para descalçar. Contra a corrente casacos saltam, camisolas abandonam, cuecas escorreram, voluntariamente, deixando o rasto de uma escolha que culminou numa nudez ponderada. Eu tenho apenas a gabardina. Ela emprestou-me por pudismo da sua consciência. Não sei bem onde começa a minha pele, se na pele negra ou se na pele que se arrepia. Avanço para o rio e a gabardina cai. Emerge-me uma confusão porque o corpo não é meu mas sou eu que o carrego. Olho para ti, fogo, perto da minha água quente e terei que decidir. Ou largo a mente ou a mente tem que resistir. A decisão não é minha, não sei onde ela está. Sei que passeio por entre corpos que são e que neles carrego partes apenas minhas, partes que, por feliz cegueira dela não as conseguiu declarar. O sexo não é meu. As noites tornam-se atrasos dos ponteiros dos relógios quando me vens à memória e no meu corpo te quero relembrar. A gabardina cai. Já não é meu o corpo. Por favor arranjem-me um corpo meu que possa tocar para me lembrar de ti, deixem-me o cheiro dele no cabelo, acordem-me durante a noite só para me relembrar que não sonhei apenas. Arranjem-me um corpo onde o primeiro toque é o meu. Estou portadora da nudez, no meio da praça em frente ao rio, a mente sente, a mente anseia mas paira pelos ventos vendo e olhando sombras que se escondem na distância. Nelas passo para poder tirar prazer, sussurando-lhes que o meu corpo é aquele ali, no meio da praça, nu, despossuído, pronto para que lhe toquem para ele poder amar.
A minha irmã. A minha irmã em nada se iguala a mim. Os meus olhos são castanhas, os delas são couves. A minha pele é morena, ela é mármore. Eu e a minha irmã em nada partilhamos a vida, a mãe ou pai ou sequer a infância. Juntamo-nos quando as vidas se realinharam e comecei, nesse momento, a viver um novo olhar sobre a família. Ter uma irmã é cruzarmo-nos constantemente pela casa e não dizer nada, é vegetar cama uma na sua cama, cada uma no seu quarto e ganhar um bidao de energia para ir ter uma com a outra porque fomos à cova com uma piada seca. Ter uma irmã é reclamar com os preços do supermercado e lançar as palavras classe da altura num contexto inapropriado. Em nada somos iguais mas ela completa-me. Em noites no deserto falamos e falamos e descobrimos onde nos cruzamos no pensamento, no coração. Ter uma irmã é combater o tempo, é embalar a melancolia de só se ter uma idade de cada vez. Eu tenho 20 anos, só posso ter agora 20 anos, nem mais nem menos tempo. Ela luta comigo contra esta condição e eu com ela. Ela vive num tempo mais recuado e faz viver e existir na minha vida toda a juvialidade e inocência que a vida deixou de me permitir ter. Ela vive na sabedoria mais jovem, eu vivo na sabedoria mais velha e vivemos juntas num encontro de tempos diferentes dando-nos uma à outra a frescura de dois universos. Obrigada, irmã. Quem diz que as maiorias são mais fortes, que as maturidades são mais relevantes, está puramente enganado. Não há predominância nesta vida e em quem nela vive, vive solitário e vendado. Não ganhamos mais do que aquilo com que nascemos só juntamos mais meios para o poder exercer. O tempo em cada dia, em cada ano nos dá e tira o que devemos viver. É bom, irmã, ter alguém que no tempo me abraça e me conforta com a tua maturidade que não é menos que a minha mas tem uma cor diferente. A maturidade não aumenta, muda de cor. Ter uma irmã é pegar-lhe nos braços agarrados às pernas de terror e abri-los para o mundo sem sentir que um buraco nos vai consumir, é espetar facas na consciência sem nunca alguma ferir. Ter uma irmã é uma constante possibilidade de em dois tempos eu existir.